segunda-feira, 28 de maio de 2007

A Bíblia como fonte Historiográfica

RESUMO

A Bíblia sagrada dos Cristãos não advoga para si a definição de “Documento Histórico”, este conceito não era peculiar aos seus autores. Não se encontra em seus escritos apenas uma tentativa de fidelidade histórica, ainda que isto lhe seja inerente, mas é possível descobrir que seu interesse é religioso, ou seja, concepções religiosas permeiam a narrativa bíblica. Não se pode desprezar, porém, que isto se dá em um momento histórico definido, portanto, fé e história se entrelaçam, criando assim um ambiente riquíssimo para o historiador moderno.

Palavras-chave: Historiografia; Positivismo; Nova Escola.


1 INTRODUÇÃO

Devo, com plena convicção, destacar, ao introduzir este trabalho, que a Bíblia não defende para si o pressuposto de “Documento Histórico”. A bíblia é um conjunto de vários livros de caráter religioso, escritos em vários momentos da história de Israel, dos Judeus e dos seguidores de Jesus de Nazaré.

É evidente que as experiências religiosas destes grupos se contextualizam num momento histórico específico, de maneira que a experiência religiosa se entrelaça com a história, em perfeita harmonia.

Este texto defende o conceito de que a Bíblia é, sem sombra de dúvida, uma fonte historiográfica, principalmente quando o labor histórico se dispõe a dialogar com as demais disciplinas das ciências humanas, construindo pontes de acesso à cosmo visão Bíblica.

Portanto, partindo das novas pesquisas, em especial, dos pressupostos da “Nova História”, entendemos que a Bíblia é uma importante fonte historiográfica, e sua contribuição é incalculável para o projeto histórico crítico.
Meu objetivo não é defender a credibilidade dos acontecimentos relatados no livro “Sagrado dos Cristãos”, mesmo acreditando ser possível, meu intuito é tão somente definir o que é a Bíblia e, tentar desmistificar algumas questões referentes ao seu texto.

Mesmo entendendo que estou condicionado pelas minhas convicções religiosa e acadêmica, entendo ser possível me lançar neste projeto com seriedade e independência, características necessárias para uma boa pesquisa.


2 O FALSO PRESSUPOSTO DE QUE A BÍBLIA É UM “DOCUMENTO HISTÓRICO”

É importante destacar que não houve, no período compreendido como “pré-moderno”, um questionamento sobre a historicidade do conteúdo da Bíblia, era fato inquestionável a veracidade de toda afirmação Bíblica, sendo que alguns posicionamentos contrários eram tidos como gravíssimo sacrilégio.

O debate sobre a credibilidade histórica da Bíblia surge em período posterior, com o advento do pressuposto “cientificista do iluminismo”, que inaugura a “era moderna” no limiar do século XVIII.

A partir deste período a Bíblia passa a ser investigada como “objeto histórico”, fato impulsionado pela pretensão de se encontrar o “Jesus Histórico”, ou seja, o homem Jesus de Nazaré, livre do condicionamento da fé dos primeiros cristãos.

A tirania “histórico-positivista” desqualificou completamente a Bíblia de sua importância histórica, atitude que distanciou completamente a historiografia do texto “Sagrado dos Cristãos”.

Até hoje a relação dos historiadores com a Bíblia não é amistosa, sendo que nos últimos anos esta imagem negativa vem melhorando, devido aos achados arqueológicos, que apontam para a fidelidade do relato Bíblico e também a atitude maleável dos teóricos da “Nova História”.

A afirmação de que a Bíblia não é um “Documento Histórico” poderá abalar as convicções dos Cristãos mal informados, mas não encontramos uma única informação no texto Bíblico que defenda este conceito de “Documento Histórico”, mesmo porque o conceito de “História” é uma pretensão do homem moderno e não fazia parte do universo conceptual dos escritores Bíblicos.
O professor de Teologia Bíblica Rochus Zuurmond (1998, p.118) da Faculdade Livre de Amsterdam, Holanda, nos traz uma importante contribuição sobre esta questão:

Por isso convém frisar outra vez que: a) os livros bíblicos, inclusive os evangelhos, não pretendem ser historiografia, já pelo fato de que a própria noção de “histórico” , como a usamos de alguns séculos para cá, era desconhecida; b) pensava-se de maneira “a - histórica” e, além disso, os evangelistas tinham por objetivo algo muito diferente de escrever história; queriam anunciar o fato, de importância mundial, de que Jesus estava vivo, com todas as conseqüências de tal fato; c) a história foi colocada a serviço do anúncio, e por isso não podia ser narrado em forma de “historiografia”, no sentido pretensioso que damos a esse termo.


Portanto, se trata de grave equívoco enquadrar a Bíblia em um conceito do mundo “moderno”, é evidente que os escritores Bíblicos tinham plena consciência de que estavam escrevendo algo verdadeiro e não tinham interesse que seus escritos impactassem a posteridade, são textos de ocasião, para fomentar a fé em Deus.

Quando o Apóstolo Paulo escreve suas epístolas não tem a menor intenção de que seus escritos se tornem textos sagrados dos seguidores de Cristo, suas cartas surgem de um difícil relacionamento teológico-pastoral com as comunidades fundadas por ele em suas viagens missionárias, portanto são literaturas de ocasião, e deve ser compreendida como tal.

Outros exemplos importantes podem ser constatados nos evangelhos, fontes que relatam as ações e os ensinamentos de Jesus na Palestina, estes escritos que partem de uma concepção religiosa sobre Jesus, não deixaram de destacar o aspecto histórico, pois se dedicaram em escrever sobre um personagem que nasceu, viveu e morreu, portanto um sujeito “Histórico”.

Qual o sentido da morte de Jesus para seus seguidores? Apenas evento histórico? Evidentemente que não, o acontecimento inaugura uma experiência religiosa: Cristo morreu pelos nossos pecados!

São alguns exemplos que mostram que o conceito de historicidade não era familiar aos autores dos livros Bíblicos, não se pode amordaçar o texto “Sagrado dos Cristãos” com concepções que lhes eram estranhas.

Portanto é falso o pressuposto que determina ser a Bíblia um “Documento Histórico”, não é este o seu objetivo, seu intento é fomentar a fé em um “Deus vivo”, cujo propósito é se revelar a toda criação, por intermédio de seu filho “Jesus Cristo”.

3 O FALSO PRESSUPOSTO DE QUE A BIBLIA NÃO É UMA “FONTE HISTÓRICA”

Acredito que em minha primeira abordagem ficou aparentemente claro que a Bíblia não é, e nem tampouco advoga ser, um “Documento Histórico”, pelo menos no enquadramento da “concepção moderna” que define as condições de tal pressuposto.

A atitude agressiva dos primeiros “historiadores iluministas” não se justificava, pois o texto “Sagrado dos Cristãos” jamais intentou ser um “Documento Histórico”, algo que tratei no capítulo anterior.

Esta falsa perspectiva distanciou os historiadores da Bíblia, negando com veemência sua importância como fonte historiográfica, é claro que esta postura deve ser entendida como um condicionamento de uma época que tentava se libertar da influência religiosa sobre o pensamento Ocidental.

Sobre o conceito que dominou a mentalidade dos historiadores do século XIX, recorro ao especialista em História, René Latourelle, que contribui da seguinte forma (1989, p.103):

A concepção da história que dominou no século XIX e que durante muito tempo inspirou os julgamentos sobre o valor histórico dos Evangelhos é a do positivismo representado por Ludwig von Ranke (1795-1886) e Theodor Monnsen (1817-1903). Ora, segundo os cânones do positivismo que aspira a dar do passado uma imagem exata e completa, a partir de fontes “historicamente puras”, esse julgamento de valor não pode deixar de ser desfavorável aos Evangelhos, estes lhes parecendo evidentemente como fontes “contaminadas” pela perspectiva da fé e pela interpretação teológica.


Esta concepção dominou por muito tempo a ciência histórica, numa atitude preconceituosa contra o texto Bíblico, evidentemente que esta visão não goza de muito prestigio na atualidade, devido à ingenuidade de seus postulados.

Segundo Latourelle (id, p.103), “Temos de reconhecer que semelhante ideal é não apenas inacessível, mas também contrário à realidade. Os fatos são sempre acompanhados por uma interpretação individual ou coletiva, sem a qual, aliás, ficariam ininteligíveis”.

É claro que esta postura antagônica inflamou reações imediatas entre os defensores da Bíblia que, tomados por um zelo religioso, empreenderam uma busca ferrenha, com o intuito de provarem de todas as maneiras a veracidade e fidelidade histórica do texto “Sagrado”, abrindo assim um abismo profundo entre as duas partes.
Juan Arias descreve este momento da seguinte forma (2001, p.23): “Por isso a Igreja se pôs a vasculhar desesperadamente nos documentos históricos da época, tanto judeus como romanos, em busca de alguma pista sobre a existência real da pessoa de Jesus”.

Estes dois pólos de tensão ficaram para trás, sendo possível hoje reabilitar o texto Bíblico como importante ferramenta de investigação historiográfica, resgatando sua credibilidade como fonte indispensável para entender a formação do mundo Ocidental.

Sobre o conceito moderno de história, Arias escreve (id, p.30):

Quanto ao conceito de história, que é, sem dúvida, muito mais preciso e rigoroso que o da Antigüidade, acredita-se que cada momento histórico possui o seu e que cada época tem uma forma de transmitir os fatos. E que não podemos julgar com critérios modernos o método usado pelos historiadores de 2.000 anos atrás.

Através da Bíblia é possível entender, com todas as dificuldades impostas, quem foi Jesus de Nazaré e de que maneira seus seguidores o interpretaram, dando origem ao maior empreendimento religioso da história, o Cristianismo.

É possível também conhecer e entender a história do povo Hebreu, principalmente quando entendemos sua influência sobre o Cristianismo, com seus valores, costumes, sua fé monoteísta, suas leis, sua estrutura socioeconômico.

Enfim, pode-se concluir que com as recentes reflexões sobre a natureza da história, sua ambição e seus limites possibilitam resgatar a importância do universo Bíblico como via de acesso para entender o mundo Ocidental.

Com muita propriedade Latourelle escreve sobre a difícil tarefa do historiador (id, p.107), “A arte do historiador consiste em captar essas harmonias que se propagam através dos séculos. É também por isso que é possível reescrever sem cessar a história, em razão da mudança do horizonte”.

Pode-se dizer, diante do enunciado, que o labor histórico deve perceber as subjetividades implícitas no fluxo da história, e o texto Bíblico é bastante amplo em experiências religiosas, fruto do universo particular de cada época.

4 CONCLUSÃO

Concluo este trabalho citando, com base no Evangelho segundo escreveu Lucas 1: 1-4, as três etapas que antecedem a origem dos evangelhos: A tradição oral, a tradição escrita e por fim o empreendimento teológico redacional.

Com base no que foi desenvolvido neste trabalho, gostaria de reafirmar que a Bíblia não é em hipótese alguma um “Documento Histórico”, ainda que este conceito traga inquietação e perturbação, muito pelo contrário, não se pode domesticar o “texto sagrado” a um mero conceito, a Bíblia vai além de conceitos e formulações.

Devo salientar, porém que a Bíblia é uma fonte historiográfica riquíssima, não podendo ser desprezada pela erudição moderna, corre-se o risco de atitude preconceituosa e leviana, tendo em vista o seu valor na elaboração do mundo Ocidental contemporâneo.


5 REFERÊNCIAS

ARIAS, Juan. Jesus, esse grande desconhecido. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LATOURELLE, René. Jesus existiu? : história e hermenêutica. Aparecida: Santuário, 1989.
ZUURMOND, Rochus. Procurais o Jesus histórico? São Paulo: Loyola, 1998.